Educação para a liberdade

06/04/2010 21:36

A Movemente - Cooperativa de Educação Popular é formada por profissionais da educação oriundos de diversos campos do conhecimento, tendo por objetivo desenvolver projetos de cunho popular que visem uma educação voltada para a liberdade. No intuito de melhor esclarecer esta posição, o grupo vem apresentar sua postura neste documento, elaborado a partir do debate e da troca de idéias entre seus membros.

 

POR QUE UMA EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE?

 

Para falar de uma educação para a liberdade, somos obrigados a partir do pressuposto ligeiramente absurdo de que há um consenso acerca do que é a educação. É fato que há inúmeras interpretações, e, pelas mais abrangentes, educar poderia ser virtualmente qualquer coisa; mas ainda que se admita que todo ato humano educa, nem todo educa visando um dado fim ou dotado de um certo sentido. O sentido dado a uma educação para a liberdade depende, portanto, principalmente do que se entende por liberdade, muito mais do que o que se entende por educação.

Liberdade, por sua vez, é de uma polissemia não aparente. O verbo do qual deriva, libertar, por vezes é usado de tal forma que se esquece que ele é transitivo: nunca simplesmente alguém ou algo se liberta ou é libertado, mas o é de algo, em relação a algo. Liberta-se da tirania, da opressão, de algum tipo de limite; a liberdade é sempre em um certo sentido, e quando não se diz em relação ao que se é livre, há um objeto implícito (por vezes um pouco implícito demais) que geralmente se relaciona, de uma forma ou de outra, com a política, a ética e/ou um ideal de autonomia. Quando pensamos a educação para a liberdade, que é a educação mais importante de todas, é neste sentido, comum e pouco destacado, que o fazemos.

De fato, o imaginário contemporâneo costuma oferecer um sentido diverso e significativamente menos político à liberdade, atrelando-o simplesmente à amplitude do direito de escolha e à ausência de limites à vontade individual (e não coletiva), que pode muito bem ser resumida pela fórmula “liberdade é fazer tudo o que se quiser” – fórmula que, além de absurda, é enganadora. Não porque reflete algo inalcançável, isto é, um ideal, o que em nada a invalidaria, mas por refletir um ideal que exigiria a ausência de todo convívio com iguais, ou, o que dá na mesma, alguma forma de onipotência. Fazer tudo o que se quer, sempre, significaria, em última instância, rejeitar o outro; e sobre isto, muito já foi dito. Além disto, se consideramos “fazer o que se quer” como sinônimo de “seguir seus desejos”, somos levados a um engodo ainda pior, que nos leva a chamar de “liberdade” precisamente seu oposto, que é a total submissão do humano a seus impulsos: fazer sempre o que se quer, então, é ser escravo do que se deseja. Sobre isto, também muito já foi dito; mas a sociedade consumista em que vivemos nos diz mais ainda – um mundo em que os objetivos tendem a se resumir aos próximos objetos de consumo, ao usufruto, à constante renovação dos pequenos prazeres da aquisição, apropriação, etc., e à reivindicação dos direitos a eles, e que oferece, a cada dia, imagens mais icônicas de alienação e heteronomia.

Pensar a liberdade como este absoluto desencarnado leva igualmente a mascarar o caráter profundamente ideológico e fetichista da imensa maioria dos projetos atuais de educação, que tendem a criar, no máximo (isto quando o fazem), uma liberdade dentro das estreitas engrenagens do sistema, isto é, uma liberdade de mercado; e se não visamos o “do quê” estar livre, como percebê-lo? Mais importante, como libertarmo-nos dele? Algo semelhante ocorre com a própria educação, que, vista de maneira desencarnada, surge como solução para todos os problemas. Por toda parte ouve-se que “falta educação”, sem que nunca se diga qual ou para quê, e, naturalmente, quanto mais os mesmos projetos educacionais de sempre, mercadológicos, ideológicos, são aplicados, mais os mesmos problemas de sempre surgem. Tais idéias, que desferem um golpe duríssimo contra o potencial criador, realizador, emancipatório da humanidade, e que são tão convenientes para os detentores do poder, devem ser radicalmente rejeitadas, se realmente queremos uma educação com vistas à liberdade.

Por outro lado, se não se deve pensar a liberdade desencarnada, mas em relação a um objeto, a que objeto (ou objetos) nos referimos? Naturalmente, como já foi dito acima, trata-se de pensá-la de um ponto de vista político, e, conseqüentemente, ético; trata-se, acima de tudo, de um projeto que tem por horizonte o desenvolvimento da autonomia.

Mesmo que tratemos destas três coisas de forma muito simplificada, é fácil ver que são profundamente interligadas. Tomemos, por exemplo, a política em seu sentido mais simplório de organização do poder social, a ética como a estruturação dos valores morais das sociedades e de cada um dos seus indivíduos (e não como sistema de valores pretensamente universais ou qualquer outra das muitas atribuições da palavra), e autonomia como a capacidade, coletiva tanto quanto pessoal, de “legislar para si mesmo”, isto é, de criar para si as regras que se pretende seguir, questionar as que já segue, de se propor como agir, enfim, ser “dono do próprio nariz”. É evidente que tal autonomia não pode ser alcançada de forma puramente individual, e que precisa, portanto, passar pela política; que é através desta que os valores morais da sociedade e de cada um de seus membros se desenvolvem e consolidam; e que ser autônomo significa também, precisamente, a capacidade de fazer seus próprios juízos de valor, isto é, desenvolver uma ética própria. Trata-se, realmente, da educação mais importante possível para uma democracia; pois sem uma educação ética e política, e sem a autonomia pressuposta por elas, o indivíduo não pode nunca participar da coisa pública e exercer o poder de cidadão, um poder político por excelência.

Esta relação entre cidadania e participação política, que outrora já foi tida como evidente, não é mais parte do uso habitual da palavra, e vem desaparecendo gradativamente do senso comum, substituída por uma cidadania constituída simplesmente pela posse de direitos e deveres, e participação limitada na sociedade civil, motivada por uma espécie simplória de solidariedade. Despolitizada, a cidadania veio a significar apenas algo como não jogar lixo na rua, doar agasalhos, e escolher, por obrigação, seus governantes, dentre uma pequena elite. Tal cidadania nada tem a ver com uma educação visando à autonomia, nem muito menos com valores democráticos capazes de levá-la a cabo; pelo contrário, vem colaborando, sistematicamente, para a desvalorização da política, da autonomia e da participação popular. Por isso, investir numa educação para a liberdade significa também investir no resgate do caráter político da cidadania, e na busca por uma democracia participativa.

 

POR QUE UMA EDUCAÇÃO POPULAR?

 

Cabe aqui novo esclarecimento quanto ao que queremos designar por educação popular. Comumente, tal expressão é usada para referir-se às camadas majoritárias e desfavorecidas da população, bem como às ações tomadas para, de uma maneira ou outra, beneficiá-las, seja atendendo às necessidades mais básicas (saneamento, alimentação, moradia), seja por uma forma restrita de inclusão nos ciclos culturais (como os espetáculos à “preços populares”), de consumo (financiamentos governamentais, redução de impostos para pequenas rendas, etc.), ou outros. Neste uso, “popular” vem a ser sinônimo das classes dominadas e dos atributos a ela associadas, positivos ou não. Não pretendemos passar ao largo deste uso; por outro lado, não nos prenderemos a ele.

Pelo que entendemos, a promoção de uma educação popular confunde-se com a de uma educação democrática, principalmente se entendemos esta em seu sentido radical: o poder nas mãos do povo. Se entendemos o povo de uma comunidade política como o conjunto de seus cidadãos, não há que se falar em democracia enquanto o poder político desta mesma comunidade não for exercido principalmente por estes, e este exercício significa participação ativa nas decisões acerca de seus próprios destinos – em outras palavras, autonomia política. A partir daí, não se concebe “popular” da maneira anteriormente vista, como referência à parcela desfavorecida, mas englobando a totalidade da população politicamente ativa, em detrimento das relações de classe; abster-se de traçar qualquer distinção política a partir de classes sociais é precisamente uma das características mais marcantes de qualquer projeto democrático, e esta igualdade é entendida como pré-requisito para a liberdade. Neste sentido, uma educação popular diz respeito até mesmo às classes dominantes.

Por outro lado, almejar a igualdade política não pode significar ignorar o conflito de classes. Aqui, “popular” relaciona-se não apenas com os ideais democráticos, mas também com a longa história dos movimentos socialistas, comunistas e anarquistas que expuseram como, ao contrário do que muitas vezes se propaga, é nos dominados que se encontra o verdadeiro potencial para a mudança da sociedade. (...)

 

Por isso mesmo podemos também ver que nenhuma organização educativa pode tomar para si a tarefa de criar a liberdade, muito menos puramente a partir de uma atividade didática especializada. Fazê-lo significaria justamente acreditar que haja um saber definitivo, técnico, acerca dos valores morais, da política, e que, portanto, em última instância não há autonomia, ou, ao menos, não pode haver autonomia para todos, mas apenas para aqueles que “sabem”. Um ideal democrático segue exatamente na direção oposta, e entende que a liberdade política só pode ser criada politicamente – e exatamente criada, instituída, e não desenvolvida; este o paradoxo da autonomia: para fazê-la surgir, deve-se agir como se ela já existisse.

Deste ponto de vista, portanto, só faz sentido pensar justamente da maneira oposta à do senso comum: apenas uma instituição educacional com engajamento político pode realmente almejar alcançar algum sucesso numa educação para a liberdade. Aliás, mais que isto, a própria ideia de uma instituição politicamente neutra mostra-se, no melhor, ingênua, no pior, uma farsa. A proposta da cooperativa é, portanto, a de uma educação política: a de, por um lado, servir como espaço para a reflexão política, e, por outro, como canal entre a didática e o ativismo, a participação política propriamente dita.

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